A Simulação de Vôo Caseira do Ponto de Vista do Treinamento de Vôo

 

A cada ano que passa, a cada versão de simulador que é lançada, a cada “add-on” que é disponibilizado, mais e mais pode-se dizer que é inegável que a nossa simulação de vôo aproxima-se cada vez mais da aviação real, no verdadeiro sentido da palavra.

Tecnologias novas de hardware e software, aprimoramentos sucessivos nas implementações de “features”, união cada vez maior de simuleteiros em todo o mundo e também a agregação dos produtos e serviços de empresas ligadas à aviação real aos simuladores de vôo. Tudo isso vem ajudando a todo esse crescimento, tornando a simulação de vôo caseira cada vez mais uma ferramenta de aprendizado, treinamento e manutenção da proficiência de vôo em diversos aspectos, sejam eles no campo da aerodinâmica/teoria de vôo, navegação (IFR e, hoje em dia, já podemos dizer que VFR também), meteorologia, sistemas embarcados, isto para citar apenas alguns dos mais importantes.

Entretanto, a existência de tudo isso, por si só, não basta para uma simulação a mais próxima possível da aviação real. Embora de grande valia, o mais importante não está aí, na verdade está no comprometimento e aplicação de fato das corretas técnicas e doutrinas de vôo. O que eu quero dizer com isto é que para um vôo realista ainda que simulado, não basta que tenhamos as ferramentas, por melhores que elas sejam (e elas, nos dias de hoje, já puderam alcançar um bom nível de maturidade, na minha opinião), o primordial para isto é que haja o uso correto destas ferramentas, com bom senso acima de tudo.

Como diz o ditado, “aprende-se a voar no chão, em vôo testa-se o aprendizado”. É claro que temos aí um grande problema, por assim dizer. No caso de simuleteiros que ao se iniciarem nessa atividade e que não são pilotos reais, gente novata em se tratando de pilotagem, poucos são os que têm ou tiveram condições de fazer a coisa da forma correta, seja por não terem inicialmente o conhecimento e/ou o auxílio necessário, falta de material de apoio, e até um pouco de displicência mesmo, o que é, de certa forma, natural quando se inicia numa atividade nova, ainda mais sendo esta atividade totalmente isenta do envolvimento de riscos. Mas aí é que está o perigo. Achar que, pelo fato de ser apenas “virtual”, a simulação de vôo pode correr despreocupada. Não, pelo menos não deveria. Estatísticas mostram que aproximadamente 75% dos acidentes aéreos são causados por erros dos pilotos e grande parte destes, devido a maus hábitos adquiridos durante a fase de aprendizado. Mas aí você pode pensar: “Mas e as pessoas que querem usar o simulador apenas como brincadeira, aquelas pessoas que não têm um interesse maior pela aviação, apenas querem se divertir, querem realmente 'jogar'“. E eu digo: Tudo bem, neste caso, como não há mesmo um comprometimento com a aviação real, não há maiores consequências. Agora, como eu havia dito, para aqueles que querem fazer uma simulação séria, e eventualmente têm o interesse em algum dia ingressar na aviação real como pilotos, estes sim deveriam se preocupar com relação a esse aspecto.

“O sucesso de um vôo depende 10% da habilidade do piloto em manejar os comandos de uma aeronave e 90% do seu bom julgamento, cujos alicerces são o conhecimento e a doutrina”. Ao voar, seja virtual ou real, é de extrema importância não só o conhecimento, a capacidade de efetuar manobras com precisão (o famoso “pé-e-mão”), mas também saber lidar com as diversas situações nas quais poderemos nos encontrar. Haverá situações bastante interessantes, agradáveis e tranquilas, sem sombra de dúvida, mas haverá também aquelas situações em que não gostaríamos de estar, porém uma vez nelas, teremos que agir corretamente em nome da segurança de vôo; especialmente, mas não somente, na aviação real. Serão situações de pane, situações de conflito de tráfego aéreo, situações de meteorologia desfavorável, enfim, uma série de desafios que exigirão o máximo das nossas capacidades de julgamento e tomada de decisão. E é neste aspecto que a correta forma de aprendizado tem uma grande influência, pois é na fase de aprendizado que adquirimos grande parte dos hábitos com que estaremos sempre envolvidos.

Podemos enumerar alguns dos maus hábitos na utilização dos simuladores especificamente:

 

-                               Setagem ineficiente dos parâmetros de configuração de realismo. Dentre algumas possibilidades, uma delas seria o ajuste de “realismo da simulação”, ou a opção “aeronave indestrutível”, ou ainda “combustível infinito”. Tudo isso, é claro, não quer dizer que se vá ter um resultado estritamente correto, pois sabemos que os simuladores, por melhores que sejam, têm certas limitações em se tratando do quesito “realidade”.

-                               Utilização da função “Pause”, especialmente nos momentos críticos, nas situações que exigem um certo tempo para que se possa fazer uma análise e tomar a melhor decisão. Não é difícil imaginar que um simuleteiro que se utilize disto regularmente vá ter problemas quando do início dos seus vôos de instrução no curso de PP, por exemplo. Problemas estes que inclusive poderão vir a afetar seriamente a segurança de vôo, dependendo da situação e da forma como o aluno irá encará-la.

-                               Total ausência de um planejamento antes de cada vôo. Neste aspecto, podemos ver que as consequências não só podem vir a atrapalhar, de alguma forma, os eventuais vôos reais futuros, como já atrapalha os vôos virtuais utilizando ATC (VATSIM, IVAO, etc), por exemplo.

-                               Má utilização dos recursos disponíveis, para um vôo ainda mais confiável. Como os simuladores tendem a ser utilizados de forma que raramente ou nunca apresentam problemas em seus sistemas, sejam os primários, de navegação, de motores, etc, os pilotos virtuais acabam se vendo (mal) acostumados a ter sua rotina reduzida às checagens básicas, quando seria interessante um constante “cross check” entre todos os sistemas disponíveis na aeronave.

 

Desta forma fica fácil então notar que a utilização de simuladores de vôo como auxílio no aprendizado/treinamento pode se tornar uma faca de dois gumes. Se utilizados de forma incompleta, incorreta, não só não ajudam, como podem atrapalhar, criando “vícios” que podem ser difíceis de serem eliminados e, pior, podem comprometer o primordial, que é o vôo seguro.

 

Texto revisado, publicado anteriormente na AeroVirtual.